A diferenciação entre danos morais e meros aborrecimentos nas relações de consumo
Em nossa rotina, frequentemente nos deparamos com circunstâncias que causam aborrecimentos: um erro na conta de telefone, por exemplo, pode significar horas de ligações para resolver uma eventual cobrança indevida. Entretanto, permanece a dúvida: quando tais situações violam direitos da personalidade, resultando em danos morais e quando são “meros dissabores”? É primordial, assim, estabelecer uma diferença entre o que se configura como um pequeno aborrecimento, e, por outro lado, o que é considerado dano moral.
A jurisprudência entende como mero dissabor o fato cotidiano da vida do homem que, embora seja capaz de importuná-lo, é frequente e imperceptível, não alterando seu aspecto psicológico e emocional. Por conseguinte, ele não atinge a esfera jurídica personalíssima do indivíduo, não caracterizando, portanto, o dano moral. Neste sentido é o Enunciado n. 159, da III Jornada de Direito Civil do STJ: “O dano moral, assim compreendido como o dano extrapatrimonial, não se caracteriza quando há mero aborrecimento inerente a prejuízo material”. É possível observar, portanto, que o conceito de mero aborrecimento decorre do princípio da tolerabilidade: há situações desagradáveis que devem ser suportadas pelo indivíduo, na medida em que são comuns a toda a população, fazendo parte da rotina de cada um.
Em contrapartida, o dano moral é tido pela doutrina como a dor subjetiva que interfere no equilíbrio emocional e bem estar do indivíduo, dor esta que foge à normalidade do dia-a-dia do homem médio. O dano moral é uma violação aos direitos personalíssimos, uma afronta à dignidade da pessoa humana.
Alguns exemplos de casos nos quais não se configuraria dano moral são: um inadimplemento contratual, que, por si só, não acarreta dano moral, cujo reconhecimento implica mais do que os dissabores de um negócio frustrado; ansiedade decorrente de espera pelo julgamento de processo judicial; tempo de espera em fila de banco; entre outros. Já alguns exemplos de casos em que cabe a indenização por dano moral são: consumidor com dívida paga que permanece com seu nome nos cadastros de proteção ao crédito; cliente que é vítima de furto, assalto e acidentes nas dependências do estabelecimento comercial; cartão de crédito, débito ou cheque bloqueados sem aviso prévio, entre outros.
Ao fazer uma breve análise da jurisprudência nacional relativa às ações de indenização por dano moral, é possível verificar uma divergência de opinião quanto à sua caracterização. Pode-se inferir, por exemplo, que o Tribunal da Justiça de Santa Catarina é mais rígido quanto à configuração de dano moral do que o Tribunal da Justiça do Paraná. Fato que pode ser observado nas seguintes ementas:
VÍCIO NO PRODUTO. RECLAMANTE ALEGA, EM SÍNTESE, QUE NO DIA 21.08.2013 ADQUIRIU MÁQUINA LAVADORA DE ROUPAS, NO VALOR DE R$ 1.210,00. INFORMA QUE EM MEADO DE 2014 O PRODUTO APRESENTOU PROBLEMAS DE FUNCIONAMENTO, RAZÃO PELA QUAL FOI ENCAMINHADO PARA ASSISTÊNCIA TÉCNICA. OCORRE QUE RETORNOU COM OS MESMOS PROBLEMAS, SENDO ENCAMINHADO MAIS DUAS VEZES À ASSISTÊNCIA TÉCNICA. OCORRE QUE DA ÚLTIMA VEZ HOUVE NECESSIDADE DE TROCA DE PEÇA, A QUAL NÃO HAVIA EM ESTOQUE E NÃO HAVIA PREVISÃO PARA RECEBIMENTO DA REFERIDA. SOBREVEIO SENTENÇA PARCIALMENTE PROCEDENTE QUE CONDENOU AS RECLAMADAS, SOLIDARIAMENTE, A RESTITUIÇÃO DO VALOR PAGO NO PRODUTO NO IMPORTE DE R$ 1.210,00 E INDENIZAÇÃO POR DANOS MORAIS NO MONTANTE DE R$ 5.000,00. INSURGÊNCIA RECURSAL DA RECLAMADA. PUGNA PELO AFASTAMENTO DA INDENIZAÇÃO POR DANOS MORAIS OU PELA MINORAÇÃO DO MONTANTE INDENIZATÓRIO. TRATA-SE DE UMA RELAÇÃO CONSUMERISTA, POIS AS PARTES ENQUADRAM-SE NOS CONCEITOS DE CONSUMIDOR E FORNECEDOR ESTABELECIDOS NOS ARTIGOS 2º E 3º DO CDC. COMPULSANDO OS AUTOS, VERIFICA-SE QUE A RECLAMANTE COMPROVOU A AQUISIÇÃO DO PRODUTO (MOV. 1.6) E ORDENS DE SERVIÇO DE ENVIO DO PRODUTO À ASSISTÊNCIA TÉCNICA (MOV. 1.8 A 1.10). RECLAMADAS NÃO PRODUZIRAM QUALQUER PROVA DE QUE CONSERTARAM O PRODUTO OU REALIZARAM SUA TROCA. PRESENTE O NEXO DE CAUSALIDADE ENTRE A ATITUDE DAS RECLAMADAS (NÃO CONSERTO DO PRODUTO) E O DANO CAUSADO AO CONSUMIDOR. DANOS MORAIS CONFIGURADOS.
(TJPR- 0000049-63.2015.8.16.0044/0 - REL. FERNANDO SWAIN GANEM, 1ª TURMA RECURSAL – COMARCA DE DOIS VIZINHOS – julgado em 22/03/2016, publicado em 29/03/2016).
APELAÇÃO CÍVEL. AÇÃO DECLARATÓRIA C/C INDENIZAÇÃO POR DANOS MORAIS. SENTENÇA DE PARCIAL PROCEDÊNCIA. RECURSO DA AUTORA. INSURGÊNCIA QUANTO À REJEIÇÃO DO PEDIDO DE INDENIZAÇÃO POR DANOS MORAIS. RELAÇÃO DE CONSUMO.VÍCIO DO PRODUTO. TRANSTORNOS DECORRENTES DA RECUSA DA REQUERIDA EM SANAR O VÍCIO DO PRODUTO. PERTURBAÇÃO INCAPAZ DE COMPROMETER A INTEGRIDADE MORAL DA AUTORA. AUSÊNCIA DE SITUAÇÃO VEXATÓRIA, ATENTADO CONTRA A HONRA, BOA FAMA OU INTEGRIDADE DA APELANTE. DANO MORAL NÃO DEMONSTRADO. MERO DISSABOR QUE NÃO REPRESENTA MÁCULA À IMAGEM DA REQUERENTE. REQUISITOS DOS ARTS. 186 E 927 DO CÓDIGO CIVIL AUSENTES. MANUTENÇÃO DA SENTENÇA. RECURSO CONHECIDO E DESPROVIDO. RELAÇÃO DE CONSUMO.
(TJSC- 2015.092331-9, DE SÃO JOSÉ – REL. SORAYA NUNES LINS, QUINTA CÂMARA DE DIREITO COMERCIAL - julgado em 17/03/2016).
Os dois casos dizem respeitos a ações de indenização por danos morais envolvendo vício de produto, nos quais o fornecedor deixou de prestar devidamente a assistência técnica. O TJSC entende que o transtorno gerado nestes casos não gera sofrimento profundo e de longa duração, não representando, portanto, um atentado à dignidade humana. O TJPR, por sua vez, entendeu que a situação gerou transtornos ao consumidor que foram além de um simples aborrecimento, ensejando a condenação ao pagamento de indenização por danos morais.
Por se tratar de um instituto tão polêmico, é natural a divergência de opiniões relacionadas ao que constitui ou não o dano moral. Todavia, é crucial que o magistrado julgue de modo justo, observando as características casuísticas. De nossa parte, destacamos que o dano moral possui dupla função: compensação do dano sofrido pela vítima; e punição do ofensor, que tem como consequência a prevenção da prática reiterada de fatos hábeis a gerar dano.
A função punitiva (ou caráter pedagógico, como parte da doutrina prefere) é paralela à função compensatória e traduz-se na punição do ofensor pelo ato ilícito, por meio de condenação a uma indenização que desestimule o cometimento de uma nova agressão. A indenização, a seu turno, também age como uma pena privada que beneficia a vítima. Temos que a não aplicação da função punitiva do dano moral faz com que seja mais vantajoso a muitas empresas dar seguimento a práticas questionáveis ao invés de investir em uma melhor prestação do serviço ou correção de vícios em seus produtos.
Não se trata de banalizar o instituto do dano moral, mas de atender ao interesse público, já que seu caráter punitivo garante ao consumidor que às empresas seja financeiramente mais vantajoso investir em melhoria de seus produtos e serviços do que ser condenada reiteradamente ao pagamento de indenizações por danos morais.